segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Realidade

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade ...
Há vinte anos!... O que eu era então! Ora, era outro... Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram! Sei eu o que é útil ou inútil?)... Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)
Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos... Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava, então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!
Sim, o mistério do tempo. Sim, o não se saber nada, Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...
Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos. Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso... Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
Talvez isso realmente se desse... Verdadeiramente se desse... Sim, carnalmente se desse...
Sim, talvez...

Álvaro de Campos

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